I. INTRODUÇÃO
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários n.º 591.797 e 626.307, ao declarar a constitucionalidade dos planos econômicos que ensejaram os expurgos inflacionários das cadernetas de poupança, configura, data vênia, grave violação à ordem constitucional, por contrariar princípios fundamentais e cláusulas pétreas do Estado Democrático de Direito.
Embora a Corte tenha se escudado em fundamentos de ordem macroeconômica e na suposta necessidade de preservação do sistema financeiro nacional, não se pode admitir que tais razões se sobreponham aos direitos adquiridos, à segurança jurídica e à proteção da confiança legítima. O Supremo Tribunal, guardião da Constituição, tem o dever de zelar, antes de tudo, pela prevalência da ordem jurídica sobre conveniências políticas ou econômicas.
A presente tese sustenta, portanto, a inconstitucionalidade material da decisão, com base nos fundamentos a seguir expostos.
II. VIOLAÇÃO A DIREITOS ADQUIRIDOS E AO ATO JURÍDICO PERFEITO
Nos termos do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Trata-se de garantia individual e cláusula pétrea de proteção à estabilidade das relações jurídicas.
Ao afastar a incidência dos índices contratuais de correção monetária sobre os saldos das cadernetas de poupança, o Supremo Tribunal Federal interferiu retroativamente em contratos já consumados, cujos efeitos foram integralmente produzidos sob a égide de normas então vigentes. Essa reinterpretação, baseada em diretrizes econômicas posteriores, ofende frontalmente a vedação à retroatividade prejudicial e compromete a intangibilidade dos direitos patrimoniais legalmente adquiridos.
III. OFENSA À SEGURANÇA JURÍDICA E À CONFIANÇA LEGÍTIMA
A decisão impugnada compromete os pilares da segurança jurídica e da previsibilidade normativa. Durante mais de duas décadas, o Poder Judiciário — em especial o Superior Tribunal de Justiça e os tribunais estaduais — firmou jurisprudência favorável aos poupadores, reconhecendo a existência de expurgos inflacionários indevidamente suprimidos.
A súbita mudança de entendimento pela Suprema Corte, desacompanhada de qualquer alteração legislativa, configura verdadeira ruptura de confiança legítima depositada pelos jurisdicionados no sistema judicial. Viola-se, assim, o princípio da boa-fé objetiva, que impõe aos poderes públicos o dever de lealdade e coerência em relação aos comportamentos institucionais historicamente consolidados.
IV. INOBSERVÂNCIA À FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
A função social do contrato, prevista no artigo 421 do Código Civil, impõe que os contratos não se prestem apenas à satisfação de interesses econômicos isolados, mas observem valores constitucionais, como a justiça, a dignidade humana e a equidade nas relações privadas.
Na hipótese dos autos, a decisão do STF esvaziou o conteúdo obrigacional dos contratos de depósito, ao desconsiderar a integralidade dos rendimentos legítimos pactuados entre as partes. Em nome da estabilidade do sistema financeiro, impôs-se ao poupador — a parte hipossuficiente — o ônus exclusivo da contenção inflacionária, em detrimento da sua legítima expectativa de retorno financeiro. Trata-se de desequilíbrio contratual imposto judicialmente, em flagrante afronta à função social do contrato e ao princípio da proteção da parte vulnerável.
V. QUEBRA DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA E ASSIMETRIA DE TRATAMENTO
A decisão em comento acarreta tratamento assimétrico entre os envolvidos: de um lado, os poupadores, pessoas físicas que confiaram no ordenamento jurídico e que se viram surpreendidos com a negativa de seu direito; de outro, as instituições financeiras, que se beneficiaram da reinterpretação judicial sem qualquer responsabilização pela supressão dos valores devidos.
Ao respaldar acordos firmados por entidades representativas — sem a manifestação expressa e individual dos titulares de direito —, a Corte acabou por impor renúncia forçada a direitos patrimoniais, o que é vedado no regime constitucional. Não se pode admitir que o Supremo Tribunal Federal atue como substituto da vontade do particular em questões patrimoniais, sob pena de comprometer o núcleo essencial da autonomia privada.
VI. USO INDEVIDO DA MODULAÇÃO DE EFEITOS COMO MECANISMO DE SUPRESSÃO DE DIREITOS
A modulação de efeitos, nos termos da jurisprudência consolidada (RE 638.115, Rel. Min. Teori Zavascki), constitui instrumento de preservação da segurança jurídica e de mitigação de impactos sistêmicos. No entanto, no presente caso, foi empregada de forma distorcida, com o objetivo de eliminar milhares de ações judiciais em curso, com decisões favoráveis já proferidas em diversas instâncias.
Tal expediente implicou verdadeira anistia judicial retroativa, a pretexto de pacificação social, promovendo a supressão de direitos sem compensação, sem individualização de situações jurídicas e sem observância ao devido processo legal substantivo. O Supremo, ao invés de modular com cautela, modulou com arbitrariedade.
VII. ATIVISMO JUDICIAL E USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO PODER LEGISLATIVO
A Corte Constitucional não pode substituir o legislador ordinário na definição de políticas públicas nem tampouco legitimar acordos privados com efeitos erga omnes. Ao convalidar o chamado “acordo dos planos econômicos” — celebrado entre representantes da sociedade civil e instituições financeiras, sem a devida manifestação individual dos titulares — o Supremo exerceu função típica do Poder Legislativo, violando o princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF).
A criação judicial de norma de renúncia de direitos, aplicável inclusive a não aderentes, revela inequívoca extrapolação dos limites da jurisdição constitucional. O Judiciário, nesse cenário, atuou como órgão legislador negativo e positivo, o que não se coaduna com a arquitetura constitucional brasileira.
VIII. CONCLUSÃO
A decisão do Supremo Tribunal Federal nos REs 591.797 e 626.307, ainda que formalmente válida, é materialmente inconstitucional. Subverte garantias fundamentais, ignora princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito e compromete gravemente a confiança da sociedade na estabilidade das instituições.
Viola-se, em essência, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a segurança jurídica, a confiança legítima, a função social do contrato, a isonomia, a legalidade e a separação dos poderes. Tais vícios, por sua gravidade, tornam a decisão inepta como paradigma de justiça constitucional.
Impõe-se, portanto, a crítica doutrinária veemente, a propositura de embargos de declaração com efeitos infringentes, e, sobretudo, a articulação institucional para que, futuramente, o tema seja reexaminado pela Suprema Corte — em nova composição, em nova conjuntura, com renovado compromisso com a Constituição.